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Internacional

Programa Mundial de Alimentos da ONU ganha Nobel da Paz

Confira entrevista publicada pela Avicultura Industrial em 2014, com o brasileiro José Graziano da Silva,  então diretor-geral da FAO

Programa Mundial de Alimentos da ONU ganha Nobel da Paz

O Programa Mundial de Alimentação (PMA) da Organização das Nações Unidas (ONU) conquistou o Prêmio Nobel da Paz nesta sexta-feira (9) por seus esforços para combater a fome e melhorar as condições para a paz em áreas atingidas por conflitos. A entidade, sediada em Roma, afirma que ajuda 97 milhões de pessoas em cerca de 88 países todos os anos, e que uma em cada nove pessoas no mundo ainda não tem o suficiente para comer.

“A necessidade de solidariedade internacional e cooperação multilateral é mais notável do que nunca”, disse a presidente do Comitê Norueguês do Nobel, Berit Reiss-Andersen, em entrevista coletiva. O prêmio é de 10 milhões de coroas suecas, ou cerca de US$ 1,1 milhão, e será entregue em Oslo no dia 10 de dezembro.

Brasileiro liderou FAO e teve papel importante

O brasileiro José Graziano esteve até meados de 2019 à frente da  Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Foi uma figura importante na efetivação do Programa Mundial de Alimentação da ONU, que recebeu nesta sexta-feira (9) o Prêmio Nobel da Paz.

Em 2014, Graziano esteve no Brasil para participar da AveSui América Latina, onde foi homenageado como “Personalidade do Agronegócio Mundial”. Durante sua passagem pelo evento, conversou com a redação de Avicultura Industrial. Na entrevista, fala sobre as causas e possíveis soluções para o problema da fome no mundo; aborda a competição pelos cereais entre combustíveis e alimentos, o que classifica como falso dilema; fala de mudanças climáticas, transgênicos e outros temas. Confira a conversa.

Em 2014, Graziano esteve no Brasil para participar da AveSui América Latina

Avicultura Industrial – Embora a produção de alimentos seja suficiente para alimentar a todos, cerca de 840 milhões de pessoas ainda passam fome no mundo. Na visão da FAO, é possível por fim à fome mundial?
José Graziano da Silva – Há alimentos suficientes no mundo. Eu diria até mais do que suficiente. Hoje, quase 40% da produção mundial de alimentos é perdida. No mundo em desenvolvimento devido a perdas pós-colheita e, no mundo desenvolvido, por desperdício à mesa. Com as atuais tecnologias disponíveis se conseguiu reduzir um pouco estas perdas e manter o crescimento da produção de alimentos. Com o uso delas poderemos alimentar não somente hoje, mas, também no futuro, as nove bilhões de pessoas previstas para o ano de 2050. A chave está no acesso. Hoje, o problema da fome não é a falta de alimentos. O problema da fome está no fato de as pessoas não conseguirem aceder a estes alimentos. Ou seja, não conseguem comprá-los ou produzi-los.

AI – De que forma é possível modificar este quadro?
Graziano – O caminho é facilitar o acesso aos alimentos. Isto pode ser feito barateando os preços, com uma produção em escala mais eficiente. O caso da avicultura e da suinocultura é exemplar. Hoje, uma grande faixa da população tem acesso a estas proteínas, que são baratas e produzidas principalmente aqui no Brasil. Eu viajo pelo mundo inteiro e encontro o frango brasileiro em todos os lados. No entanto, é preciso também encontrar formas para que pessoas sem rendimento possam aceder a este alimento. O nível de desemprego permanece alto; não no Brasil, mas em outras partes do mundo. Programas de transferência de renda como o Bolsa Família existente aqui no Brasil têm sido muito importantes neste objetivo. Atualmente, 20% da população da América Latina participa de programas de transferência de renda. Podemos dizer que a transferência de renda é uma espécie de bem-estar social do século XXI. Creio que programas como este ajudam muito a reduzir a fome no mundo.

AI – Em outras regiões do mundo, programas de trans¬ferência de renda também têm sido aplicados com sucesso?
Graziano – Os programas de transferência de renda são aplicados hoje no mundo inteiro. Por exemplo, a FAO aplicou há dois anos um programa de transferência de renda na Somália. A Somália estava em uma situação classificada como fome aberta, que aqui no Brasil às vezes é chamada de fome africana. Em dez meses, com a aplicação de um programa de Cash for Work, ou seja, pagamento por trabalho, foi possível retirar a população somali da fome.

Então diretor-geral da FAO, foi homenageado como “Personalidade do Agronegócio Mundial'AI – Em relação à produção de alimentos, tecnologias como a transgenia podem se tornar uma solução para o problema da fome no mundo?
Graziano – Sempre digo que não precisamos hoje de transgênicos para acabar com a fome no mundo. As tecnologias que temos disponíveis oriundas da Revolução Verde dão conta disso. Mas, os transgênicos são um avanço científico muito importante para a humanidade exatamente porque não é tão somente um tema de alimentos. Tende-se a confundir os transgênicos com as sementes de soja. Este, no entanto, não é um tema de monopólio das sementes. Há as mais diversas aplicações para os transgênicos. Estou vindo agora de Barão Geraldo [distrito do município de Campinas-SP], onde há uma infestação de dengue. Uma das soluções encontradas para solucionar o problema é soltar um macho geneticamente modificado do mosquito Aedes aegypti [vetor da doença] que não procria. Outro exemplo é na indústria farmacêutica. Hoje, uma série de fármacos é produzida em organismos geneticamente modificados. Então, existem inúmeras aplicações que já usamos. Não obstante, há uma preocupação crescente da utilização desta tecnologia do ponto de vista do consumidor, principalmente na Europa. A FAO defende que os produtos sejam etiquetados e o consumidor saiba o que está consumindo. No entanto, os transgênicos não podem ser descartados para o futuro. Não sabemos exatamente o que vai acontecer. Há uma incerteza sobre os impactos que as mudanças climáticas podem trazer para a produção de alimentos no mundo.

AI – As mudanças climáticas podem remodelar o atual cenário mundial de produção de alimentos?
Graziano – Já estão modificando e em um ritmo muito acelerado. Recentemente estive no Chile [participando da 33ª Conferência Regional da FAO para a América Latina e o Caribe]. Todo o norte do país está comprometido pela baixa disponibilidade de água. As cidades desta região chilena já estão sendo abastecidas com água dessalinizada para o próprio consumo humano. O atual cenário já está sendo reconfigurado.

AI – A FAO divulgou estimativas próprias das emissões de gases de efeito estufa procedentes da agricultura, silvicultura e outros usos da terra, apontando crescimento de 14% nas emissões oriundas da produção agropecuária nos últimos dez anos. É possível equalizar a produção de alimentos – que precisa ser maior – com a obrigação de reduzir estas emissões?
Graziano – É a primeira vez que divulgamos estes nossos cálculos. Esta iniciativa faz parte de um esforço visando chamar a atenção para um dado que é importante e que é preciso entender o contexto dele. A agricultura tem um peso nas emissões de gases. Não quer dizer que ela seja a mais importante, nem que vá resolver o problema. Mas, a agricultura tem que contribuir para a solução. Dentro da agricultura, o setor pecuário, principalmente o bovino, é o que mais preocupa. Efetivamente há um impacto crescente nas emissões de gases estufa devido ao aumento dos re-banhos principalmente em países do Cone Sul, como Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai. Colocado este contexto, há a necessidade de mitigar, ou seja, reduzir estas emissões. Mas, este é um desafio que nunca tinha sido posto. Neste sentido, mudanças na die¬ta animal é uma grande saída, especialmente em criações confinadas. Há soluções. O importante é que uma vez constatado
o problema, a pesquisa começa a dar suas respostas efetivas. É cedo para afirmar que há qualquer incompatibilidade entre a produção de alimentos e redução das emissões. É uma dificuldade a mais, sem dúvida. No entanto, nada que a pesquisa não possa resolver, assim como ela já resolveu tantas outras dificuldades.
 
AI – Durante a Conferên¬cia Regional da FAO no Chile, o senhor apontou que haverá uma recon¬figuração do comércio internacional, resultado de uma reação à commoditização dos alimentos. A produção regional deve passar a ser muito mais valorizada. Como ficaria a situação do Brasil, que é um grande exportador de commodities?
Graziano – O Brasil é hoje o campeão das commodities internacionais, indo da soja aos produtos avícolas. Esta situação irá impor uma reconfiguração produtiva no Brasil, no sentido de procurar aten¬der diferenciadamente os mercados. Eu sei que isto já é feito no País. Há um atendimento diferenciado para determinados grupos religiosos, cuja alimentação tem demandas específicas, assim como para mercados árabes e da Ásia no que tange a carnes, por exemplo. Mas, há uma pressão cada vez maior pela traçabilidade dos produtos de origem animal, particularmente carne verme¬lha. Existe uma pressão crescente para que os produtos incorporem uma regionalização, chamada denominação de origem. É uma política em vigor e com sucesso na União Europeia, que tende a se estender para outras regiões do mundo desenvolvido, como Estados Unidos e Canadá. Também, há uma pressão pela recuperação de produtos tradicionais. Vou citar o exemplo do Brasil. Dada a volatilidade nos preços dos cereais, recuperar um produto como o feijão é fundamental. É um produto nacional, sem mercado internacional, portanto, não é uma commodity. Se realmente quisermos cuidar da segurança alimentar brasileira, o feijão é um dos componentes desta cesta básica.
 
AI – O senhor citou a volatilidade nos preços dos cereais. A especulação tem pressionado bastante os preços das commodities agrícolas. Como a FAO vê esta atual dinâmica do mercado de commodities?
Graziano – Os mercados estão agitados basicamente por duas razões neste momento. Uma seca que se prolonga de maneira imprevista no continente Sul, particularmente na América do Sul. Outra, pelas crises políticas e os conflitos na Ucrânia. Estes dois elementos têm elevado a instabilidade dos preços. Mas, nossa previsão é muito confortável. Está se colhendo a se¬gunda maior safra de cereais da história. É um pouco menor do que a safra anterior, mas os estoques estão abastecidos. Não temos nenhuma previsão de crise, como o ocorrido há dois anos com o milho devido à seca nos Estados Unidos. O momento é de cautela, mas não de apreensão. Digo isto para desestimular estas especulações que começam a surgir e resul¬tar em retenção de estoques. Não temos ainda um prognóstico que nos permita falar em dificuldades no mercado de cereais.

AI – Muito se fala da suposta competição entre a produção de alimentos e a de biocombustíveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, a cadeia de etanol já consome mais milho do que a cadeia de produção animal. Na opinião do senhor, o direcionamento de commodities agrícolas para a produção de energia prejudica a produção de alimentos?
Graziano – Eu diria que esta discussão já está superada no tempo. Foi uma discussão de cinco anos atrás. Em maio, entrou em produção nos Estados Unidos a primeira usina produtora de etanol a partir de celulose, palha e restos vegetais. Há uma série de desenvolvimentos também direcionados à produção de energia a partir de restos da produção animal – gordura, óleos
– que já estão implementadas há algum tempo. Hoje, há uma diversificação de fontes. O cereal não é mais a única possibilidade.
 
AI – Mas, o etanol de milho ainda tem uma forte produção nos Estados Unidos.
Graziano – No caso dos Estados Unidos há uma forte pressão sobre o milho, mas existem alguns elementos que precisam ser levados em consideração. Os norte-americanos são os grandes produtores mundiais de milho. Tem 40% do mercado internacional desta commodity. Qualquer seca, como a de 2010-2012, afeta o mundo todo, não apenas os Estados Unidos. O que precisa ser feito é ter alguma flexibilidade nas medidas adotadas pelos norte-americanos para a mistura do etanol na gasolina ou até mesmo em sua venda sepa¬rada. O que já está sendo feito. Quero sublinhar bem isto. Os norte-americanos introduziram ano passado, a partir das pressões, alguma flexibilidade nestas medidas e estão dispostos a aumentá-la. Mas, eu diria que para o futuro, esta discussão da competitividade entre alimentos e combustíveis é um falso dilema.

AI – Recentemente, no Brasil, se têm registrado algumas iniciativas de usinas de etanol de cana¬-de-açúcar utilizando o período de entressafra para produzir etanol a partir do milho. O senhor considera isto um avanço ou um retrocesso?
Graziano – Se o Brasil não acelerar o passo, irá perder a posição privilegiada que possui em biocombustíveis. Estamos falando já em biocombustíveis de terceira geração. O Brasil teve soluções muito inovadoras nesta área, como a produção de energia elétrica a partir do bagaço. Algo que hoje é uma realidade em boa parte das usinas modernas, não naquelas mais antigas. Esta e uma série de outras inovações estão acontecendo no mercado de energia. O Brasil precisa acelerar o passo para não perder o bonde da história.

AI – Quando eleito para o cargo de diretor-geral da FAO em 2011, o senhor apresentou uma proposta de trabalho baseada em cinco pilares. Dentre eles, um era o fortalecimento da cooperação Sul-Sul, formada pela América Latina e Caribe, África e alguns países da Ásia, Oriente Médio e Oceania. Especificamente nesta prioridade, houve avanços?
Graziano – Muitos avanços. Vou citar o caso do Brasil, que não tinha uma presença marcante no cenário internacional. Hoje, o País tem uma cooperação só com a FAO de US$ 30 milhões. O que o faz ser o segundo maior doador, vamos dizer assim, para os nossos programas na América Latina. Mas, não é só na América  Latina. O Brasil está hoje presente em muitos países da África e em outros tanto países. Tanto de maneira direta, através do Ministério das Relações Exteriores, como por meio da Embrapa, com uma cooperação técnica que está crescendo. Esta cooperação Sul-Sul já é uma realidade.

AI – O mundo tem presenciado o fechamento de vários acordos bilaterais. Embora no final do ano passado a OMC tenha conseguido destravar a Rodada Doha, bloqueada desde 2008. Acordos bilaterais não acabam por excluir do comércio e dificultar o acesso a alimentos mais baratos os chamados países menos desenvolvidos ou até em alguns casos os ditos emergentes?
Graziano – O comércio bilateral, os acordos bilaterais e o comércio intrarregional são uma realidade no mundo globalizado. Eu aposto muito mais no crescimento do comércio regional e intrarregional do que propriamente no comércio global. Creio que esta reconfiguração produtiva que venho alertando vai empurrar o comércio intrarregional muito mais do que o comércio mundial.

AI – A ONU declarou 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. É possível conciliar agronegócio com a agricultura familiar?
Graziano – A agricultura familiar faz parte do agronegócio. O maior exemplo se tem aqui em Santa Catarina, onde as cadeias produtivas de suínos e aves estão integradas por meio de contratos com a produção de larga escala de frigoríficos. Colocar a agricultura familiar e o agronegócio em lados distintos é uma falsa oposição. É muito mais uma luta política dos interessados nesta oposição do que qualquer relação com a realidade.

AI – Qual o papel do Brasil neste enorme desafio de alimentar o mundo?
Graziano – O Brasil é hoje um dos grandes celeiros da humanidade. Não só de grãos, mas também de carnes. O País ocupa hoje uma posição de liderança internacional em vários mercados. Um país que tem esta capacidade, e uma disponibilidade tecnológica renovada constantemente pela Embrapa, é sério candidato a continuar na pole position. Não tenho dúvidas de que o Brasil continuará liderando este esforço de adaptação para enfrentar o perigo da fome no mundo.